Crônica: Alguém grandão rabiscou o caminho das formigas
- Marcos Paulino
- 7 de abr. de 2021
- 2 min de leitura

“Morte significa um despojar-se de tudo o que não é você. O segredo da vida é morrer antes que você morra – e descobrir que não existe morte”. Releia. Com atenção, saboreando cada palavra. É mais palatável do que parece à primeira vista. É um trecho de “O Poder do Agora”, livro mais conhecido do escritor alemão Eckhart Tolle.
Grande parte da humanidade acredita que somos, em essência, alma ou espírito ou o nome que se queira dar à energia que, imortal, transcende os ponteiros do relógio e que representa nosso verdadeiro eu. Nesse sentido, o corpo é apenas um invólucro, aquele que aparece no espelho. Nós, de verdade, estamos dentro dele. Ou em volta dele. Misturados a ele. Em toda parte. A maioria de nós tem muito receio do que acontecerá com nosso corpo, a cada dia, a cada momento. Mas ele é só carne e ossos que ao pó voltarão.
Nosso eu verdadeiro, livre do corpo, seguirá sua jornada. Terá outros corpos. Ou não. Vai saber. Cada um que se apegue à sua fé. Com força, que ajuda na viagem. Esses pensamentos meios desconexos vêm à minha mente nestes tempos caóticos. Éramos formigas andando em filas, cada uma carregando sua folhinha, umas mais pesadas, outras menos. Aí alguém grandão rabiscou o nosso caminho e tudo ficou bagunçado.
Umas conseguiram seguir em frente, outras se perderam e depois se acharam e mais umas tantas seguem atordoadas. Nenhuma de nós, formiguinhas, estejamos onde estivermos, está entendendo de fato tudo o que está acontecendo. Rainhas ainda conseguem manter o trono e sua provisão de folhas. Operárias travam uma batalha tantas vezes inglória cujo resultado inevitável é a derrota. E são mais estas que aquelas que precisam acreditar que nossos corpos de formiga passarão, enquanto nós, de verdade, passarinhos seremos.
E a história segue assim, sem que ninguém adivinhe como termina. As cenas dos próximos capítulos estão embaçadas. Houve quem achasse que uma pandemia uniria as formiguinhas, que, enfim, perceberiam que operárias e rainhas, no fundo, bem lá fundo, até que são iguais. A realidade, entretanto, é que ela mostrou que, mais do que nunca, quem pode mais puxa mais folhas para seu ninho.
Quando alguém gritou “Quem quer vacina?”, todo mundo, dedo em riste, correu para a fila, até aqueles que, ainda há pouco, desdenhavam dela. Nos comentários da notícia dando conta de que profissionais da segurança receberiam a imunização, fisioterapeutas, farmacêuticos, dentistas, cuidadores de idosos e várias outras fileiras de trabalhadores se alinharam, reivindicando suas doses. O sapato sempre vai apertar nosso calo mais do que o calçado do vizinho apertará o dele. O problema é que o cobertor é curto demais e não vai alcançar todas as demandas, nem as mais justas.
Alguns mais iluminados já devem ter interiorizado a ideia de que, como disse Tolle, e disseram tantos outros antes dele, a morte não existe. Enquanto isso, por via das dúvidas, os desconfiados queremos mesmo é tomar a agulhada que vai adiar por mais um tempo nosso (re) encontro com a verdade. Até lá, ficaremos nervosos quando o segurança do supermercado nos apontar a arma que revela nossa temperatura. 36,5. Ufa!
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